Os números do Orçamento do Estado para 2012 (OE) estão distribuÃdos por diversos mapas, todos acessÃveis no site do parlamento:http://www.parlamento.pt/OrcamentoEstado/Paginas/oe.aspx
No mapa 3 (Despesas dos Serviços integrados por classificação funcional) existe uma despesa chamada “Operações da DÃvida Pública†no valor de 131.863.000.000, a qual representa 69.9% do mesmo total geral. Foi precisamente esse mapa que o DE usou para afirmar que os gastos sociais são os mais importantes. Podemos ainda ver, no mapa 4 (Despesas dos serviços integrados por classificação económica) duas rubricas relativas à dÃvida:
Juros e outros encargos, no valor de 8.013.824.636€
Passivos financeiros, no valor de 122.250.000.000€.
Juntas, somam 130.263.000.000€, uma quantia muito semelhante à anterior, e que representa 69,1% do mesmo total global.
Uma importante lição a ser retirada deste montante astronómico das operações da dÃvida não é, como sugerem alguns comentários, de que esse valor é refinanciado com recurso ao mercado ou à Troika. E que, portanto, não são gastos efectivos que saem do nosso bolso.
O que verdadeiramente importa é que o montante da dÃvida gera uma renda na forma de juros e que os trabalhadores cada vez vão pagar mais. Por isso está acordado no plano com a Troika a constante subida da dÃvida a pagar: 2007 ( 68,3% do PIB), 2011 2011 (107,8% do PIB), 2013 (115,7% do PIB) (previsão do governo)
Mesmo que a taxa juros baixasse, conforme os planos do governo para retornar ao mercado, uma vez que o montante total da dÃvida contÃnua a aumentar, a massa de juros total que é paga aumenta sempre. Eis porque a dÃvida é uma forma de acumulação de capital, uma renda, e não uma dÃvida dos trabalhadores!
Revista Rubra, 28 de Setembro de 2012
A dÃvida gera uma renda? É verdade. Mas há outros aspectos a considerar. Se a dÃvida pública for contraÃda internamente, e não no exterior, as suas consequências económicas e financeiras serão muito diferentes, uma vez que os juros – a tal renda – será paga a agentes económicos nacionais, e não estrangeiros, o que evitaria a sangria de meios de pagamento. E se os tÃtulos de dÃvida pública forem adquiridos em grande parte pelos pequenos aforradores, até o aspecto pior da renda desapareceria.
Para além desta reflexão é evidente que se deverá fazer um esforço no sentido de travar o aumento da dÃvida externa – pública e privada – o que só se conseguirá com o equilÃbrio das contas externas e com a proibição do estado se financiar no exterior.
Apontar para estas realidades parece-me mais importante do que fazer apenas uma leitura ideológica da dÃvida e das rendas que ela proporciona. Ao fim e ao cabo, a nossa prioridade é resolver os problemas com que nos defrontamos, e as leituras ideológicas pouco contribuem para isso.
O que é uma leitura ideológica? Onde é que há aqui qualquer falsa consciência, se assim entendermos a ideologia.
Há aqui um facto – do qual ninguém discorda – e uma proposta polÃtica, a qual certamente tem poucos adeptos na esquerda parlamentar.
Explique-me porque é que a renegociação da dÃvida é uma proposta – baseada aliás na dupla mentira de que isso resolveria alguma coisa e que alguma parte da dÃvida é legÃtima – e a suspensão uma ideologia?
Não sou a favor de uma renegociação, pelo que isso implica de sujeição aos agressores. Por isso proponho a limitação, unilateral, da taxa de juros devida ao nÃvel da que é paga pela Alemanha relativamente à sua dÃvida soberana. Quanto à anulação, ou suspensão, da totalidade da dÃvida, para lá das minhas dúvidas quanto à sua legitimidade, coloco o obstáculo de tal medida não ser exequÃvel. Reclamar uma coisa que politicamente não é passÃvel de se concretizar, parece-me inútil. Só uma postura ideológica pode levar a reclamar o impossÃvel. Mas reduzir unilateralmente a taxa de juros sobre a nossa dÃvida soberana, já me parece exequÃvel – ainda que não por este governo -, o que permitiria ao estado poupar 4 a 5 mil milhões de euros por ano, que poderiam ser canalisados para a saúde, para a educação, para a segurança social, e para o investimento produtivo.
Que coisa extraordinária : limitar unilateralmente os juros a pagar. Delicioso. A chatice disso é que corresponde efectivamente a um evento de credito, um incumprimento. Torneiras fechadas durante uns tempos…
Nuno
a questão “se a dÃvida pública for contraÃda internamente” não é aplicável ao nosso caso, pelo que não adiantam exercicios de possibilidades (se, se, se) que nada têm a ver com a realidade.
Segundo dados do Eurostat, em 2009, a divida portuguesa era detida em 74,5% por fundos de investimentos estrangeiros, 17,2% por empresas multinacionais (incluindo bancos) e apenas 8,4 por particulares, muitos deles, obviamente, meros testas de ferro de interesses estrangeiros. Estou-me a lembrar, p/e das PPP onde os capitalistas nacionais “investem”, mas se formos a ver melhor, a maioria do dinheiro vem do Banco Europeu de Investimento (37%).
Desde então tem havido uma relativa fuga desses capitais, que os capitalistas tentam a todo o custo substituir por garantias à s dÃvidas prestadas pelo Estado português. É o caso de 12 mil milhões do empréstimo da Troika que foram literalmente enfiados nos Bancos privados e dos quais ninguém presta contas
A explosão simultânea das dÃvidas públicas dos paÃses do sul da Europa não foi qualquer coincidência, muito menos fruto de qualquer “regabofe” desses povos.
A crise global que estourou em Wall Street em 2008 representa a falência global do capitalismo, que se revela cronicamente incapaz de ultrapassar a crise de sobreprodução em que se encontra mergulhado, de forma intermitente, desde os Ãnicios do século 20, e que já provocou duas guerras mundiais.
Mares de riqueza “fictÃcia” criada pela bolha especulatória que precedeu a crise, estão assim a esfumar-se ou em risco disso. O capital está desesperado à procura de “portos seguros” onde o investir com “rendas garantidas” e de novas maneiras de garantir a reprodução do capital e a manutenção ou aumento das taxas de lucro.
Obviamente, depois de destruÃdas as ilusões financeiristas e especulatórias do capital, só lhes resta, como “solução”, a imposição de dÃvidas “vitalÃcias” à s nações/povos periféricas e o brutal aumento da taxa de exploração dos trabalhadores (baixa de salários, corte de direitos, etc).
Toda a perifieria europeia foi assim escolhida, pelo capital anglo-americano e franco-alemão, para ser escravizada pela dÃvida. Os misteriosos ataques dos “mercados” não têm qualquer mistério. Tratou-se de uma estratégia concertada para nos colocar a “canga” à s costas, obviamente, com a cumplicidade dos, cobardes e serviçais, governos liberais e social democratas da perifireia.
A dÃvida pública é assim, efectivamente, uma renda do capital, cujo pagamento nos está a ser imposto. Nada há nada de “ideológico” nesta afirmação.
Para além de mais, as dÃvidas foram deliberadamente “contruÃdas” de forma a serem impagáveis. Os agiotas globais, tal como os da mafia, não querem que nós saldemos definitivamente qualquer dÃvida. Querem que continuemos a pagar “eternamente”.
Esta é a natureza da escravatura pela dÃvida.
Tendo a concordar em grande parte com esta análise. É esta aliás a mensagem que tento passar aos meus alunos. Quando a maioria das pessoas se convencer que é o próprio sistema que impede a saÃda da crise talvez seja possÃvel gerar uma ruptura sistémica. O problema está em que cada grupo ou movimento da esquerda acha que a alternativa que se impõe é a que lhes é mais querida, fundamentalmente com base em ideologias e não em análises isentas. Ou seja, por hipótese podemos vir a criar as condições para mudar de sistema mas, logo a seguir, não haverá consensos quanto ao que fazer. E corremos o risco de voltar à mesma treta de sempre.
Sem qualquer recurso a ideologias ou receitas prontas a servir, estou cada vez mais convencido que a solução não é estatizar a economia – a partir de um conceito estático de luta de classes – mas a fusão do capital e do trabalho numa rede de empresas cooperativas em que os trabalhadores são proprietários, gestores e utilizadores dos meios de produção, permitindo uma interacção razoavelmente livre da oferta e da procura. Porque sou libertário, acho que as relações no seio de uma sociedade devem ser tão livres e espontâneas quanto possÃvel, garantindo o estado apenas que essas liberdade e espontaneidade não geram relações de exploração ou de injustiça. Apenas a banca e as outras actividades financeiras, assim como serviços públicos essenciais, devem ficar sob o controlo do estado.
A transição para uma economia deste tipo não seria particularmente complexa, nem perturbaria o seu normal funcionamento. Mas eliminaria de um golpe a oligarquia capitalista e reduziria drasticamente quaisquer situações de abuso. Mas quantos partidos ou movimentos de esquerda estariam dispostos a abandonar os seus sonhos “marxistas-leninistas” ou socialistas utópicos, para permitir uma mudança que, sendo radical, não iria contrariar os sentimentos mais arreigados da grande maioria da população? Suspeito que, infelizmente, a tentação de criar uma vez mais uma sociedade à volta de um inexistente “homem novo”, acabe por inviabilizar a implantação de um sistema aceitável para a grande maioria dos portugueses.