Lição de Anatomia do Dr. Tulp. 1632.
Diante da obra de Rembrandt (um corpo vasto ou vastÃssimo, note-se que o historiador W. Valentiner, em 1923, lhe atribuÃa 714 pinturas, enquanto o Rembrandt Research Project, hoje a autoridade máxima nesta questão, em 1989, reduziu este número para 250) ou diante da obra de Caravaggio (sobretudo as pinturas posteriores à s da Capela Contarelli em torno de S. Mateus, Ig. S. LuÃs dos Franceses, Roma, 1598-1602, sabendo-se que as atribuições caravaggescas são assunto pacÃfico – M. Gregori atribui-lhe 87 obras), diante das obras decisivas de um e de outro, a primeira tendência de um olhar desprevenido é olhá-las como as máximas representantes do claro-escuro barroco, o que não é, nem de perto nem de longe, o problemas essencial que elas suscitam. Outro erro comum reside em ver nesse claro-escuro intenções simbólicas ou simbólico-teológicas (é a leitura de Maurizio Calvesi, contudo uma leitura isolada). Se os temas discutidos ao longo da história em torno de Rembrandt e Caravaggio não são o claro-escuro e o seu valor teológico, então quais serão? Paradoxalmente, o primeiro tema e a primeira onda de discussões sobre ambos foi a questão do «realismo», do «naturalismo» e da dependência (sobretudo em Caravaggio) em relação ao modelo – dependência do real e do natural que muitos crÃticos e contemporâneos viam como forma de fragilizar a idealização na pintura e as suas obrigações para com a produção do belo.
Ora bem, temos então a polémica realista. Este tema serviu para desferir crÃticas a ambos artistas no século XVII.
Por outro lado, e deveras importante, nunca a luz de Caravaggio foi lida por contemporâneos, ou teóricos imediatamente posteriores à sua morte (1610), como simbólica ou teológica, mas antes dotada de uma especÃfica função formal. Quanto a Caravaggio, lendo atentamente as biografias de Giulio Mancini, do rival Baglione (rival mas objectivo e útil, como nos diz Helen Langdon, a mais conhecida das biógrafas actuais) e do autor posterior, mas do século XVII, Giovanni Belori, reitera-se a referida acusação de realismo e dependência do modelo (e quem quiser pode ainda prolongar o seu estudo por Vincenzo Giustiniani, Scanelli, Sandrart ou, mais tarde Félibien, o adepto de Poussin, pintor que teria dito que “Caravaggio veio ao mundo para destruir a pinturaâ€).
Embora a luz de Rembrandt não partilhe a natureza e “origem†de Caravaggio, também o holandês, pelos seus contemporâneios foi acusado de “realista†em textos de Sandrart, Baldinucci e Arnold Houbraken. Curiosamente, em Caravaggio, o tema da luz está correctamente associado ao do “realismoâ€, pois Mancini refere a importância da invenção lumÃnica caravaggesca para reforçar a impressão de volumetrias e relevos (o rilievo), nas figuras, panejamentos e objectos. Portanto, o realismo contém aspectos negativos (impede a “idealizaçãoâ€) e positivos (a marcação volumétrica é mais eficaz).
Mas a luz de um e outro autor é deveras dissociada nos propósitos: a de Caravaggio vem ligada a um negro opaco onde a luz parece não penetrar, e a de Rembrandt entra tanto nas zonas de obscuridade, que na semi-obscuridade que produz (inexistente em Caravaggio) são claramente visÃveis as cenas que aà vão ocorrendo.
Regresso do Filho Pródigo. 1662.
A obscuridade de Caravaggio em nada se relaciona com este factor: ela tem uma forma e vida independente daquilo que está banhado pela luz (os corpos), daà que o crÃtico Roberto Longhi, talvez o italiano (século XX) que melhor o conhece, tenha dito que Caravaggio é o primeiro pintor a dar corpo à obscuridade. Por outro lado, Rembrandt teria sido o primeiro pintor a usar os vários graus de obscuridade e semi-obscuridade para nos dar a sensação de espaço. Veja-se o notável Regresso do Filho Pródigo (a partir do Evangelho de S. Lucas), de 1662. As figuras que rodeiam o pai que perdoa o filho estão cada uma delas numa zona diferente de obscuridade, repartindo-se da luz à mais funda obscuridade (mas nunca até aos negros de Caravaggio, antes ao tom terra sombra queimada intenso, nunca negro). Ou seja, esta gradação das zonas de luz dá-nos a sensação de espaço e de profundidade, não precisando o autor da perspectiva para nada – e tanto Caravaggio quanto Rembrandt (ou Velázquez) desprezavam a perspectiva. Portanto, se a obscuridade de Caravaggio tinha forma, a obscuridade de Rembrandt dava-nos espaço.
E que outra é a particularidade de Rembrandt? É muito importante: é o empaste ou “impastoâ€, que se trata de uma acumulação de matéria na tela para que ela responda por princÃpios de modelação de tipo “escultóricosâ€; além disso, note-se que estes empastes também vão relacionar-se com a luz da pintura, quer a luz “interiorâ€, quer a exterior que a ilumina artificialmente, pois os empastes produzem reflexos inesperados. Ora estes empastes rembrandtianos são um forte elogio da mão e da pintura como “trabalho de atelierâ€.
O problema destes empastes coloca-se também nesta época num contexto em que se opunha uma pintura “delicada†(defendida por Félibien, que favorecia Poussin) e uma pintura “rude†(defendida por de Piles, que favorecia Rubens).
Outro ponto a separar Caravaggio de Rembrandt: a pelÃcula fina da pintura caravaggesca nada tem a ver com a pintura espessa de Rembrandt, que além da espátula chegava a usar os dedos no lugar dos pincéis. Ora, estes empastes elogiam a mão, como disse, pois o tacto, em Rembrandt, é o modelo para a compreensão da pintura, não que ela deva ser tocada, mas porque ela exige que a visão tacteia a obra.
Uma obra não pode ser vista de uma vez, ela tem de ser “tacteada†pela visão, como se esta fosse uma mão em actividade. A conhecido Lição de Anatomia do Dr. Tulp é muito clara nesse aspecto: o dr. Tulp apresenta aos seus alunos, que se debruçam sobre um cadáver, os tendões de um braço aberto para que se perceba como se processa o movimento da mão. Mas o mais curioso desta obra é que a outra mão livre, a esquerda, do dr. Tulp faz um gesto que só pode ser o gesto accionado pelos tendões que ele aponta com a mão direita. Concluindo, no mundo de Rembrandt, a mão é a responsável pela visão, ou, pelo menos, co-responsável.
Auto-retrato como Zeuxis. 1662.