O doutor Teles e Melo contemplou algo desagradado a dedada infantil marcada no mármore liso junto da sua porta de entrada. Durante alguns segundos dedicou-se a cogitar sobre a incontrolabilidade das crianças, a degradação das condições de higiene do prédio e a decadência do mundo ocidental na sua generalidade. A sua mão ainda principiou o movimento de deslocação ao bolso para tomar o lenço cuidadosamente dobrado e elidir a gritante marca de gordura do acesso ao seu apartamento, mas o pensamento de que o tecido imaculado ficaria tingido com a poeira, suor, germes, pêlos e vestígios de sangue do infractor deteve-o.
Antes, tirou a chave da carteira e começou a cogitar a erudita prédica que daria na próxima assembleia de condóminos – cujo tema, sabia-o agora, abrangeria a sacralidade da propriedade privada e as ideias de Locke sobre a educação das crianças – quando uma voz rouca o interpelou.
– Sô dôtor!
O doutor Teles e Melo virou-se para encarar a cara redonda e mal-barbeada do Pereira, o porteiro do edifício.
– Boa tarde, sô dôtor.
O doutor Teles e Melo não era propenso à sociabilidade, mas sabia que vivia numa sociedade onde há regras para se cumprirem e o fundamento dessas regras são as boas maneiras, que devem usar-se sempre, independentemente do estatuto social ou da qualidade da dicção do interlocutor. Foi por isso, com extrema delicadeza, que respondeu:
– Senhor Pereira, como vai?
– Eu vou bem, sô dôtor. – o Pereira parou junto dele, pousou o saco do Minipreço com detergentes e a embalagem de 32 rolos de papel higiénico no chão, coçou a nuca e depois olhou-o embaraçado.
O doutor Teles e Melo tentou então, de forma amável, recordar-se de algum dado pessoal sobre o Pereira que servisse de tema para os próximos segundos da conversa, que o doutor Teles e Melo desejava fosse tão breve quanto possível, quando o Pereira, sem qualquer tipo de intróito ou rodeio pertinente, lhe perguntou com toda a frontalidade:
– Sô dôtor… O que acha desta coisa do condomínio?
O doutor Teles e Melo, mesmo tendo uma ideia assaz precisa daquilo a que Pereira se referia, entendeu que a boa educação exigia alguma resistência da sua parte:
– Como assim?
– Esta coisa do sô dôtor Janela… Isto de ele agora querer voltar a ser administrador do condomínio, depois de ter desistido a meio do mandato…
– Ah, ora… – resistiu ainda o doutor Teles e Melo para ganhar alguns segundos para pensar – julgo que se trata de uma decisão normalíssima.
O Pereira pareceu algo atrapalhado, mas insistiu.
– Mas o sô dôtor não acha que uma coisa mal feita? O homê, assim, largou a coisa quando as contas deram pô torto e agora vem aí com a cavalgadura toda tentar correr com os que lá estão?
O doutor Teles e Melo franziu o sobrolho para demonstrar ao seu interlocutor que o seu discurso era pouco avisado.
– Como estava em curso de lhe explicar, parece-me um decisão normal… e consideravelmente oportuna. Basta ver que foi sob a estimada direcção do doutor Janela que este condomínio atingiu o seu auge da sua, ainda curta, é certo, história.
O doutor Teles e Melo olhou a dedada e continuou, com uma expressão de repulsa:
– O sistema de higiene comum era eficientíssimo… a contabilidade revelava extremo rigor… Inclusivamente os media, particularmente na figura do boletim “O Correio do Condomínio” visitaram-nos repetidamente e divulgaram nas suas páginas os trabalhos e posições do doutor Janela sobre as questões condóminas.
– Não era bem assim! – exclamou o Pereira, de modo algo impertinente, mas que o doutor Teles e Melo teve a bondade de ignorar por ter em mente a deficiente educação do seu interlocutor – Quer dizer, houve três assaltos na garagem, duas inundações… E ele saiu por causa daquelas contas esquisitíssimas… Tiveram de despedir a Zeca e o marido por causa do prejuízo!
– Há que ter em mente que…
– E aqueles condóminos com que andou à bulha e obrigou a mudar de casa? E aquela cena, sô dôtor, que eu achei tristíssima, de mandar apagar o nome do empreiteiro aqui do prédio ali da entrada! E já para não falar dos vizinhos dos outros prédios aqui… Ui, não podiam com ele! Andava sempre a acusá-los de os prédios deles estarem mal feitos, e fazerem muito barulho e não sei o quê.
– Receio que não esteja a visualizar todo o contexto necessário para compreender a acção fundamental do doutor Janela… – disse imperiosamentte o doutor Teles e Melo – amigo… – acrescentou para introduzir uma nota cordial no seu discurso, sabendo que este era um tratamento muito apreciado pelas pessoas do nível social do Pereira.
– Mas…
– O doutor Janela é o maior administrador que este condomínio já teve! – exclamou o doutor Teles e Melo, sentindo cada sílaba da sua frase ressoar-lhe gravemente na boca. – Tem as qualidades que o tornam num administrador-nato: a autoridade natural, a visão de futuro, a popularidade, a ombridade moral, a transparência, a honestidade, a coerência de ideias e acção. É daqueles homens que todas as pessoas de natureza inferior odeiam por reconhecerem o seu valor!
O Pereira abriu a boca, mas não emitiu nenhum som.
– Por isso tem tantos inimigos. E amigos! Veja o número de pessoas do condomínio que estão do lado dele…
O Pereira pareceu sair do seu estado de torpor
– Então, dôtor…, – Pereira, na pressa de falar, esqueceu-se do “sô”, o que não deixou de causar uma ponta de indignação ao doutor Teles e Melo – É só os primos, o genro e a neta que ele para cá trouxe…
– Permita-me que discorde com toda a veemência! Eu não sou seu familiar e estou do lado dele, mesmo conhecendo-o desde criança. E, graças a isso, pode crer no que lhe digo: o doutor Janela é um grande líder e, uma raridade absoluta!, um líder que é geneticamente contra o poder. Homens assim são raros e preciosos na história da humanidade e o nosso prédio devia estar cheio de orgulho pelo seu regresso e estar integralmente do lado dele até ao fim!
O Pereira ficou calado, com ar macambúzio a olhar para o chão. Já o doutor Teles e Melo sentiu-se vitorioso, mas esgotado e com uma necessidade absoluta de repousar no seu divã e mandar a empregada fazer um bom chá com leite. Mas antes, intuiu que era imperioso colocar um ponto final e exclamativo no assunto.
– O doutor Janela é o Churchill do n.º 113, Bloco A!
E abriu a porta e entrou em casa, despedindo-se do Pereira, que ficou com o ar perplexo de quem estava à beira de perguntar quem é o “sô dôtor Texarxile”.
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Absolutamente delicioso. Felizmente que são os Pereiras deste país que têm o poder de decidir quem querem à frente deste nosso grande condomínio.
Obrigado.
Notável caricatura!
Nuno, parabéns! Só agora tive tempo para ler o teu magnifico texto: Ironia, sátira política, savoir -faire, sim senhor. Parabens!!! :):):):):)
O que terá pensado o Doutor Teles e Melo dos 32 rolos de papel higiénico?
Leio o Nuno desde os meus tempos de faculdade.
O Já e a Vida Mundial marcaram, por pouco tempo é certo, uma época em que eu religiosamente comprava cada uma destas edições religiosamente.
Soube apenas agora, pelo RandomBlog http://rb02.blogspot.com/ que há novo director na FOCUS
vou mudar de revista.
vai certamente valer a pena