No outro dia, à minha frente, vinha uma rapariga a ler “A educação sentimental”. Não estava a fazer género, não era bonita nem feia (nem me lembro se tinha óculos), estava simplesmente a ler. A cena tinha ar de primeiro mundo, muita elevação espiritual, parecia que estávamos “no estrangeiro”. A seguir a Hegel ou Kant, que me parecem os mais aconselháveis para os transportes públicos (cheios), eu acho óptimo que se leia “A educação sentimental” no metro – e Flaubert é o romancista francês de que eu mais gosto, depois do insuperável Stendhal e do Roger Vaillant da minha juventude, que embora por outras razões também é hors concours; mas a rapariga que não era bonita nem feia, nova nem velha (aliás, a sua característica principal era mesmo ser tão incaracterística), era apesar disso distintamente portuguesa e vinha a lê-la em inglês, numa daquelas edições baratas da “OUP” ou da “Penguin”. Em inglês? Ainda se fosse Dostoievski, Turguenev, ou algum outro romancista russo aplicado, isso sim, lê-se em inglês porque o russo é uma impossibilidade, com as suas letras esquisitas e as suas não-sei-quantas declinações; eu, o pouco Goethe que li também foi em francês (excepção feita à poesia, tradução de Paulo Quintela, Imprensa da Universidade de Coimbra, que a paternidade me legou) e se calhar só por isso é que consegui entendê-lo; agora Flaubert, menina, lê-se em francês – ou à falta dele em português, porque não? O problema é que já quase ninguém se dá ao trabalho de aprender francês, e o resultado é lamentável. Já não me refiro a ficarmos cortados de uma grande língua de criação, de um universo editorial enorme e de um por vezes útil correctivo de algum paroquialismo cultural anglo-americano (o vice-versa também é verdade, evidentemente); refiro-me ao facto de termos na maior parte dos casos trocado o francês, que falávamos razoavelmente mal mas em que nos fazíamos entender também razoavelmente, mais que não fosse por causa do fundo comum das duas línguas, por um inglês que parece muitas vezes um pidgin exótico quando é usado por nós, uma língua bárbara que serve para tratar de practicalities e pouco mais. Eu adivinho que daqui a pouco tempo vamos ficar quase todos bilingues, com o português péssimo que hoje se fala e por consequência se escreve e por cima dele, como se de um verniz pronto a estalar se tratasse, uma demão de inglês, mais passivo que activo, para fingir que estamos ligados ao mundo. À Restauração de 1640 devemos a condição de único povo da Península que não fala castelhano nem sequer como segunda língua, coisa que, à parte consequências políticas várias que não são de desprezar (eu pelo menos não as desprezo), constitui um benefício estético imenso; agora, é o inglês que vem colonizar as cabecinhas das nossas elites: tant pis. O livro que a rapariga do metro estava a ler chamava-se “A Sentimental Education” e eu estive para interrompê-la e dizer-lhe que estava mal, devia ser simplesmente “Sentimental Education” porque o original se chama “L’Education Sentimentale”, mas obviamente não disse nada e em vez disso saí no Marquês a pensar numa tese estapafúrdia que inventei ali e segundo a qual a trituradora cultural anglófona tinha transformado, com aquela mudança do artigo definido para o indefinido, a particular educação sentimental de Frédéric Moreau, pessoa singular, numa educação sentimental mais vasta, transformando o seu caso numa categoria, a sua personagem num tipo e a sua história única e eminentemente francesa e parisiense num clássico de pacotilha igual a todos e como todos em inglês, para desfrute de leitoras tão incaracterísticas como a minha mas em circulação na Bakerloo ou na District Line. Ora se tratam assim o grande Flaubert, como não hão-de tratar umas meras curiosidades etnográficas paradas no fundo do tempo e no fundo da Europa? Beware, my friends…
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