Entre o “fim do mês” individual e o “fim do ano” colectivo temos andado nos últimos anos (e há quem diga desde sempre) como mexilhões entre o mar e as rochas.
O mundo tem medo do fim do mundo. Portugal tem medo do fim do mês. Nos últimos dias, enquanto na ONU se discutia a reacção aos testes nucleares norte-coreanos, nós por aqui discutÃamos a questão das SCUT em todos os seus cambiantes técnicos.
O caso das auto-estradas Sem Custos para o Utilizador, e se devem ou não deixar de sê-lo, tem peso no “fim do mês” de muitos portugueses, e logo tem uma importância que eu não quero menosprezar. Por outro lado, diz-se que os portugueses têm de fazer mais um esforço (na verdade, sucessivos novos esforços) no seu fim do mês para ajudar o Estado a lidar com o seu próprio “fim do ano” orçamental. Sendo este o equivalente colectivo ao “fim do mês” de cada um, também não nos podemos desresponsabilizar. Entre o “fim do mês” individual e o “fim do ano” colectivo temos andado nos últimos anos (e há quem diga desde sempre) como mexilhões entre o mar e as rochas. Daà a discussão, com contornos algo bizantinos, sobre que auto-estradas têm ou não alternativas e se o programa do governo tinha ou não margem retórica que permitisse a oneração destes trajectos.
O mal, como já foi dito, é que tudo isto obscurece uma questão polÃtica de base: os eleitores votaram na certeza de que as auto-estradas em questão não seriam pagas e agora sentem-se enganados. Isto, que já é sério, encobre algo ainda pior: os portugueses estão habituados a este ciclo de sacrifÃcios, promessas não cumpridas, fugas para a frente (e para Bruxelas), trocas de actores, novos sacrifÃcios e novas promessas não cumpridas. Escandalizam-se mas não vêem alternativas.
Portugal tem pelo menos três problemas: um problema financeiro (do Estado), um problema económico (do PaÃs) e um problema polÃtico. Qualquer deles é serio; nenhum deles é inultrapassável. A estratégia comum tem sido: devemos dar toda a prioridade ao problema das finanças (vulgo, “do deficitâ€) para depois intervir no problema da economia. Eu defenderei que o problema prioritário é o polÃtico.
Mas antes, vejamos o que temos em termos de diagnóstico, onde há duas escolas dominantes. Uma delas é a culturalista, que põe as culpas na piolheira que o paÃs sempre foi e sempre será e nos defeitos morais e temperamentais do espécime que povoa este habitat (preguiçoso, desorganizado, etc.). É um diagnóstico sem soluções: nenhum remédio poderá funcionar, porque nenhum funcionou antes. Salvo substituir todos os portugueses por finlandeses ou suÃços, não há nada a fazer. Como, apesar do pessimismo com que tratam os nativos, os defensores deste diagnóstico não tomam a única posição possÃvel que seria defender o aumento da imigração, a posição culturalista vale mais como anedota velha do que como proposta original.
A segunda escola é a economicista: o seu principal objecto é o das contas certinhas. Sem tempo para perder com metapsicologia barata, o que esta escola nos diz é apenas: quem não tem dinheiro não tem vÃcios. Se for verdade (como dizem os culturalistas) que o paÃs não pode mudar, então teremos de nos conformar a ser um paÃs pobre ou remediado, e ter hábitos de pobre ou remediado. Esta prescrição, que em princÃpio valeria para toda a gente, é inaceitável para a nossa elite, que nunca teve hábitos de pobre ou remediada. Corte-se então nos “vÃcios” de quem se puder cortar, que são os restantes. Acontece que estes “vÃciosâ€, na verdade, são aquela garantia de um mÃnimo de dignidade a que a grande maioria dos portugueses acedeu tarde e a más horas, conservou por pouco tempo, e agora nos dizem que é incomportável. Os economicistas respondem friamente: tanto pior.
Quem tiver uma visão um pouquinho mais abrangente, porém, não poderá esquecer que os portugueses prejudicados são os que estão presos à armadilha do trabalho pouco qualificado ou desqualificado. É mais de metade do paÃs. Não podem fazer planos a longo prazo, não têm possibilidades de arriscar, não vêem como dar a volta por cima — nem podem, porque precisamos deles como estão. São eles a base de tudo o que aqui se faz. Na sua faixa superior, a dos funcionários públicos, ainda têm algum poder de reivindicação, mas têm sido apresentados como os principais adversários dos restantes, chamados de “privilegiados”, e seja como for o “fim do mês” não dá grande espaço à solidariedade entre categorias profissionais.
O nosso problema económico é que, como um todo, Portugal também está preso na armadilha do trabalho desqualificado. Tentámos subir de divisão, não conseguimos, e agora estamos a lutar para não descer.
O problema polÃtico é o que nos ocupa menos: descrença generalizada na polÃtica (tão grande que não pode ser subestimada), conformação com os vÃcios da democracia (como a corrupção), ausência de propostas claras ou alternativas de poder, nenhuma renovação de actores, partidos fechados no seu mundo, etc. Enquanto tivemos lÃderes que respeitámos pelo seu passado, a coisa disfarçou. Agora está difÃcil fazer a transição, mas ao contrário do que se possa pensar, a culpa não é dos polÃticos: é nossa.
Não é da falta de consenso polÃtico: há lá mais consenso do que em torno do deficit e dentro do bloco central? Não é da falta de estratégia: o governo propõe o plano tecnológico, que só peca por vir tarde e não ter resultados imediatos. Não é da falta de informação: os telejornais duram uma hora, o prós-e-contras parece durar para sempre. É da falta de acção: o “fim do mês†não nos deixa pensar em voluntarismo polÃtico, mas só vamos resolver o problema do fim do mês se resolvermos o outro primeiro. Não é só nosso: toda a Europa e muitos paÃses por esse mundo fora sofrem do mesmo.
No nosso caso, trata-se da incapacidade de um paÃs com dez milhões de habitantes se tornar numa república com dez milhões de cidadãos. É o problema-base da democracia, apenas isso; não deveria ser tão difÃcil.
Acho que vou passar a rezar virado para Rui Tavares. Brilhante, brilhante post!