Salvo raras excepções, quando se fala na presença árabe (e judaica também) em Portugal e Espanha, é quase sempre como uma peça arqueológica: um “artefacto”, uma “coisa”. Depois vem a “Reconquista”, os árabes retiram-se da história e deixam-nos cá essas relÃquias. São “legados”, “influências”, “técnicas agrÃcolas”, coisas que, na prática, não nos dizem grande coisa, para lá dos cacos e dos utensÃlios, excepto a uns poucos estudiosos. Sabemos também que nos deixaram palavras e até sabemos quais são, mas não sabemos de que maneira é que essas palavras foram nossas e foram deles até ao ponto em que o que é “nosso” e o que é “deles” deixa de fazer sentido. Porque é assim, sem fora nem dentro, que as palavras se partilham entre os povos.
Há no entanto, ainda ao nÃvel das palavras, uma manifestação muito concreta e muito visÃvel, muito mais concreta do que essa presença em retirada dos “artefactos”. Algo que se transmitiu como um discurso e que ficou sendo “nosso” não como um “legado” exterior, mas por dentro, na estrutura concreta das coisas que chegaram até nós. Foi a poesia oral árabe, com as suas formas (as “moaxás” e as “jaryas”) que, de algum modo impalpável mas seguro, se comunicaram à tradição poética galego-portuguesa das cantigas de amigo e à castelhana dos villancicos.
A referida “moaxá” ou “muwassaha” (ler com dois chapéus invertidos por cima dos “s” e um ponto por baixo do “h”) é um dos géneros da poesia estrófica árabe que se desenvolveu no Ocidente do mundo árabe (isto é, na PenÃnsula Ibérica). Aà criou raÃzes e daà espalhou-se para o Oriente. Sobre ela escreveu o poeta egÃpcio Ibn Sana al-Mulk (nascido por volta do ano 550 da Hégira – 1155 do calendário cristão) o ouro puro das palavras que se seguem:
[…] Entre as coisas que os antigos deixaram por descobrir aos modernos — coisas em que as gentes de agora superaram as de antanho, em que os habitantes do Ocidente venceram os do Oriente, e em que os [velhos] poetas “deixaram [aos seus sucessores] algo que remendar — figuram as muwassahas, sal da época, Babel da magia, âmbar de Sihr, aloé da Ãndia, vinho de Qufs, ouro puro do Algarve, patrono de entendimentos, balança de inteligências, quinta-essência suprema, posto que ao mesmo tempo deleitam e emocionam, incitam [à imitação] e fazem desesperar [de lográ-la], seduzem e atraem, libertam [de cuidados] e ocupam [o ócio], acompanham e afugentam. São ditos festivos e graciosos, que são toda a seriedade, e seriedade que parece dito festivo e gracioso; verso que o olho tomaria por prosa e prosa que o gosto diz ser poesia.
Graças a elas, o Ocidente converteu-se em Oriente, pois por aquele horizonte surgiram e aquele ar iluminaram, fazendo com que os habitantes das terras ocidentais se tornassem nos mais ricos dos homens, ao tornarem-se donos deste tesouro que o destino lhes reservou e desta mina antes desconhecida da humanidade.
Na flor da minha vida e nos meus verdes anos a elas me liguei, amei-as com paixão, ouvi-as amiúde, aprendi-as de cor, estudei-as a fundo, penetrei os seus segredos, […] revolvi-as por dentro e por fora, abracei-as suas virgens e as suas matronas, nadei atrás das suas pérolas escondidas e, não contente com as notÃcias sabidas, internei-me nas suas ocultas dobras. […]
Ibn Saba al-Mulk, Dar at-tiraz, citado por Emilio GarcÃa Gomez na revista Al-Andaluz (1962), traduzido por Aida Fernanda Dias na História CrÃtica da Literatura Portuguesa (dir. Carlos Reis) da ed. Verbo, vol. I, 1998, p. 153-154.
Fala-se pouquissimo da nossa herança judaica. POUQUISSIMO, ou mesmo NADA. 🙁
Investiga a origem do nome belo/bello(em Portugal), André!
e, já agora, aproveita e investiga DIAS.
por mera curiosidade historica…evidentemente!
se precisares de ajuda…no probs!
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