Paulo da Costa Domingos anda escrevendo um longuíssimo poema com as palavras (e as imagens) de outros (aquele que possa dizer como sua uma única palavra, que atire a primeira pedra!). Falava do arrebatamento editorial da Frenesi, voz de resistência que ecoa nos pátios abertos ao vento como na obscura madrugada do espírito descalço. Mas invoque-se agora os seus outros versos de combate, reflexões em reflexo, fruto áspero da raiva, das poucas barbas por fazer do lirismo do burgo. O volume mais recente, Nas Alturas (Frenesi, 2006), transfigura a torre de marfim em farol de nevoeiros, mas também esconderijo de um snipper ácido, mas benévolo.
Primeiro passo: «Outro Inverno passou, e a verdade/não encontrou a sua morada./ Outra coisa não se esperaria/ senão um manto de silêncio/ sobre a morte de um homem.» Pergunta o poeta-moralista face à neblina, quando «todos os dias é o fim de uma época prodigiosa», se alguma marca pessoal marcará «os séculos do povo?». A verdade está condenada a fugir como o horizonte.
A casa, «sede social de todos os sentimentos», está forrada de livros velhos, anjos vetustos e pálidos. O poeta «adulto/ em roupão, balão com vinho, lareira», sabe que nem por isso é livre. Vê poetas convencidos fumando, vê programas no cabo esfumaçando o tempo. Do outro lado dos vidros, está a cidade-reflexo: a mulher da limpeza, os novos ventos de leste nos porteiros, um tiro. Há frases, movimento, opulência, e com tudo a sujidade. «Desconforto que é ser-se incapaz/de escalar paredes e sentir vertigens,/e contratar “negros” que afinal são/ brancos». Perde-se autonomia para vagas de outros trabalhadores eventuais arrumados por cores. Não conhecemos o próprio lixo. Desconhecemo-nos. Não nos governamos. Desgovernamo-nos. «Os corpos colam-se no calor dos trans-/portes públicos que passam sob/ as ramadas oblíquas de gente/ dormente, desenraizada, onde/ grande inimigo é o tempo.» Espera-se a guerra e vive-se contra o tempo trabalhando electrodomesticamente, tortura a que escapam apenas o gatos, inúteis «como, aliás, devem ser os versos, espreguiçados/ ao longo de um muro». E o poeta, de «faca atravessada na vigília», olha de cima os distintos rumos da alienação, do triste quotidiano, da apatia, do mercado. «Juízes, pediatras, joalheiros: cançonetistas/ preparam a alvorada da gestão da matéria,/ sentem a intensidade das suas existências/ como um espectáculo bem remunerado,/ mais um, enquanto compõem colarinhos perante a frieza espelhado do alumínio.» Dá-se bem com o bulício, mas recolhe daí ensinamentos para diálogos com mortos notáveis. Teme apenas o fogo que apague os anjos lívidos que lhe fazem companhia, mas não o tranquilizam. O passado não é remédio para dormir.
Perde-se bastante lirismo neste sobrevoar atabalhoado do poema que tira como nenhum o retrato da cidade na beira do inferno do presente, mas estou na pressa de chegar à questão esta. «Em/nenhuma época nunca/ tanto cúmplice se acomodou/ numa consensual renúncia». Sabendo de outras épocas apenas pelo relato das fontes interessadas, poderemos afirmar que a apatia de hoje é maior que a de ontem? Quem nos garante que a militância de outros tempos, quando foi, por exemplo, moda obrigatória, não ajudou a carpinteirar o sofá onde agora nos refastelamos? Vive em nós, é certo, restos de um fascismo que tolhe a revolta, colectiva mais ainda; que evita a participação, em colectivo mais ainda; que adia a construção de autonomias, de espaços despudorados, sem poder nem estado. E a sós, no íntimo ou na rua, não haverá combate por travar? Tanta pressa para aqui chegar, mas para nada mais fazer além da defesa da voz solitária do poeta. Esta por exemplo. «O interdito do prazer (fu-/mar, beber, rir, fornicar,/degredar o dinheiro) é/a continuação do fascismo/por outros meios». Estamos de acordo, queimemos o charuto.
JOÃO PAULO CONTRIM
novo cinco dias
acesso ao novo 5dias.net.- COLA O TEU CARTAZ, ACTIVISTA! 1. Imprime o cartaz. 2. Cola-o no local de trabalho, na escola, na mercearia, no café, na rua, onde te apetecer. 3. Fotografa-te, com os vizinhos, os amigos, o teu cão, junto do teu cartaz. 4. Envia-nos a foto para a página do Manifesto em Defesa da Cultura no Facebook e será publicada.
-
Comentários
- Raquel Varela em Bloco de Esquerda, os cães e as crianças
- Raquel Varela em O Cão de Hitler
- coronel tata em O Cão de Hitler
- Raquel Varela em O Cão de Hitler
Autores
- André Levy
- António Figueira
- António Mira
- António Paço
- bicyclemark
- Bruno Carvalho
- Bruno Peixe
- Carlos Guedes
- Carlos Vidal
- Cláudia Silva
- Eugénio Rosa
- o engenheiro
- Francisco Furtado
- Helena Borges
- João Labrincha
- Jorge Mateus
- José Borges Reis
- João Torgal
- João Valente de Aguiar
- Joana Manuel
- Manuel Gusmão
- Margarida Santos
- Miguel Carranca
- Morgada de V.
- Nuno Ramos de Almeida
- Paulo Granjo
- Paulo Jorge Vieira
- Pedro Ferreira
- Pedro Penilo
- Rafael Fortes
- Raquel Freire
- Raquel Varela
- Renato Teixeira
- Ricardo Santos Pinto
- Sérgio Vitorino
- Tiago Mota Saraiva
- zenuno
tags
15O 19M bloco de esquerda Blogues CGTP Constituição da República Portuguesa cultura democracia desemprego educação eleições Esquerda EUA Europa FMI greek riot greve geral grécia Guerra-ao-terrorismo humor i intifada mundial irão israel jornalismo liberdade Lisboa luta dos trabalhadores media música NATO new kid in the blog... Palestina parque escolar pcp Portugal presidenciais 2010 presidenciais 2011 PS psd repressão policial Revolução Magrebina Sócrates Vídeo youtubearquivo
- Julho 2013
- Janeiro 2013
- Dezembro 2012
- Novembro 2012
- Outubro 2012
- Setembro 2012
- Agosto 2012
- Julho 2012
- Junho 2012
- Maio 2012
- Abril 2012
- Março 2012
- Fevereiro 2012
- Janeiro 2012
- Dezembro 2011
- Novembro 2011
- Outubro 2011
- Setembro 2011
- Agosto 2011
- Julho 2011
- Junho 2011
- Maio 2011
- Abril 2011
- Março 2011
- Fevereiro 2011
- Janeiro 2011
- Dezembro 2010
- Novembro 2010
- Outubro 2010
- Setembro 2010
- Agosto 2010
- Julho 2010
- Junho 2010
- Maio 2010
- Abril 2010
- Março 2010
- Fevereiro 2010
- Janeiro 2010
- Dezembro 2009
- Novembro 2009
- Outubro 2009
- Setembro 2009
- Agosto 2009
- Julho 2009
- Junho 2009
- Maio 2009
- Abril 2009
- Março 2009
- Fevereiro 2009
- Janeiro 2009
- Dezembro 2008
- Novembro 2008
- Outubro 2008
- Setembro 2008
- Agosto 2008
- Julho 2008
- Junho 2008
- Maio 2008
- Abril 2008
- Março 2008
- Fevereiro 2008
- Janeiro 2008
- Dezembro 2007
- Novembro 2007
- Outubro 2007
- Setembro 2007
- Agosto 2007
- Julho 2007
- Junho 2007
- Maio 2007
- Abril 2007
- Março 2007
- Fevereiro 2007
- Janeiro 2007
- Dezembro 2006
- Novembro 2006
- Outubro 2006
- Setembro 2006