Fotografia da Paulete Matos
Não tinha tempo, mas continuava a preocupar-se com a vida. Teve a capacidade de construir cidades no deserto
Na minha juventude usávamos uma frase do Gramsci com que se pretendia expressar a nossa forma de ver o mundo e as adversidades do dia-a-dia. TÃnhamos “o pessimismo da razão e optimismo do coraçãoâ€. O Miguel foi abençoado com uma razão em que o coração e um imenso optimismo mandavam. Para ele era sempre possÃvel tomar os céus de assalto e exigir o impossÃvel, para me manter na linguagem de uma tribo diversa e particular de que ele era um dos expoentes. As vidas não têm resumo. Mas alguns gestos condensam uma existência.
Em 1982, o Miguel imaginou uma cidade num deserto. Durante mais de uma semana, milhares de jovens acampariam na praia do Carvalhal, na Comporta, em Tróia. Nada havia lá, para além do mar e dos mosquitos. Menos de um ano depois, sucediam-se debates, concertos e festas sob o lema “Dêem uma oportunidade à pazâ€. Neste debates participavam pessoas com opiniões plurais e diversas. Mais de dez mil concentraram-se na cidade de Setúbal contra a instalação dos mÃsseis nucleares dos EUA em território europeu. Um ano antes, ninguém julgava possÃvel a construção de uma verdadeira cidade no meio de uma praia deserta. Mas o Miguel tinha a capacidade de nos fazer sonhar. Inspirava-nos a transcender a nossa vida e a mudar a realidade. E, de facto, centenas de pessoas mobilizaram-se para que, em Junho de 1983, aquilo que alguém tinha imaginado se transformasse numa vontade colectiva e numa realização de muitos.
Alguns dos seus amigos diziam a brincar que o Miguel tinha a capacidade de vender frigorÃficos aos esquimós no Pólo Norte. Só assim se explica que com a ajuda dos seus amigos Dias da Cunha e Jorge Sampaio tenha falado com os banqueiros Jardim Gonçalves, José Roquette, Artur Santos Silva e Rui Vilar de que o paÃs precisava de um semanário de esquerda e que eles deviam investir nisso, tendo convencido parte deles. Dessa vontade e capacidade nasceu o semanário “Jáâ€, que juntava jornalistas e activistas de esquerda provenientes da revista “Contrasteâ€, que o Miguel tinha dirigido, e dos “Cadernos Politikaâ€, uma revista da Juventude Comunista Portuguesa. Durante mais de um ano, aquilo que parecia irrealizável foi feito com o trabalho de muitos e com umas dezenas de milhares de contos de uns poucos.
Tinha um sorriso caloroso e uma generosidade contagiante. No meio do trabalho era possÃvel os amigos zangarem-se com ele, mas era impossÃvel ficarmos muito tempo furiosos. Era o Miguel e conquistava-nos com um novo sonho, uma nova quimera, uma nova ideia impossÃvel. A verdade é que, nas suas mãos, as coisas pareciam fáceis.
Quem imaginaria que era possÃvel fazer o Bloco de Esquerda?
Na passada quinta-feira tentei falar com ele, as notÃcias não eram boas. Respondeu-me por SMS, com o humor do costume: “A tua sorte é que não consigo falar. Novidades?†Não abordámos o maldito cancro. Informei-o de que a polÃcia de intervenção tinha cercado e isolado a escola da Fontinha e que uma pessoa nossa amiga estava lá dentro. Escreveu-me “manda-lhe um abraço de solidariedadeâ€. Apesar de se saber sem tempo, escreveu um dos seus últimos comentários no facebook: “A Es.Col.A da Fontinha, que tem um trabalho mais do que meritório com a população do bairro, está a ser despejada à bruta por uma cruzada de polÃticos idiotas. Que todas as boas vontades se juntem contra a estupidez. Já.â€
Certamente que se orgulharia dos milhares de jovens que no dia da liberdade, contra “a tolerância zero ao 25 de Abril†de um intendente da PSP, a retomaram, e diria com aquela voz rouca e calorosa: “É a nossa gente.†E rir-se-ia do autarca portuense que, no dia seguinte, mandou roubar as sanitas e as canalizações para que as populações não pudessem imaginar fazer qualquer coisa daquela escola. Miguel Portas sempre foi um militante polÃtico, mas o seu combate foi arranjar-nos formas de podermos concretizar os nossos sonhos e correr com a gente que se dedica a uma polÃtica de sarjetas
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Nuno, juventude ‘lontana’?
Pessimismo da razão, optimismo da vontade (‘volontà ‘)…