Acampada Rossio. Maio. 2011.
THOMAS HIRSCHHORN. Banners (intervenção no Guggenheim, Nova Iorque). 2009.Â
1. CONTRA A PRIVATIZAÇÃO DA ESFERA PÚBLICA
A ideia central deste post está no seu tÃtulo: defende-se que o espaço público, ou esfera pública, alicerce da afirmação e consolidação da democracia burguesa e da burguesia como classe dominante, está desde o princÃpio destinado à total privatização, conclusão subsequente a uma reflexão sobre o “ser†da arquitectura e o urbanismo contemporâneos. Algo que, precisamente, inverte e subverte esta mesma criação utópica burguesa deste espaço e de sua funcionalidade. Este é um primeiro ponto.
Num segundo tempo, e ao contrário do que muitos julgam (Madame Mubarak e a incomensurável burrice Jugular, por exemplo ver aqui), só uma ocupação como a das “acampadas†(Tahrir, Barcelona, Madrid, Lisboa-Rossio, etc.) pode restituir o classificativo “público†ao que deveria ser público e vem sendo cada vez mais privado, intimidatório, “protegidoâ€. Logo, desejo que os projectos de ocupação do Rossio nunca terminem, e que à acampada outras formas de mobilização (assembleias populares, flash mobs, etc.) se venham tornando a forma ideal de vivenciar a praça, aquela e outras praças numa cidade (a própria cidade contemporânea em geral) cada vez mais ghettizada e exclusivista (privatizada, em suma), e que essa forma de ocupação (de libertação, no fundo) seja cada vez mais politizada, pois o entretecimento público-polÃtico é, como já um camarada desta casa afirmou, um restabelecimento da definição de espaço público desde Péricles, TucÃdides ou Aristóteles.
Contudo, na Grécia, o conceito de “esfera pública†ainda não existia, pelo menos como Jürgen Habermas, em Strukturwandel der Öffentlicheit / A Transformação Estrutural da Esfera Pública (1962) o instituiu como realidade histórica e sinal de outros e novos tempos. Expliquemo-nos. Como se sabe, historicamente, uma das conquistas das sociedades liberais democráticas, representantes de uma etapa de desenvolvimento do estádio civilizacional do capitalismo e do paradigma vivencial da burguesia ascendente, é o espaço público ou esfera pública. Esta abertura (inicialmente pretendida como verdadeiramente pública) assumiu na polis e na sua gestão um papel relevante desde o século XVII, sobretudo em Inglaterra, transformada pela revolução industrial mais tarde, e associada a uma outra etapa de desenvolvimento dos modelos mercantilistas de produção de riqueza; correspondendo ao aparecimento dos massmedia e à estrutura do estado moderno e dos seus renovados espaços de circulação: de pessoas, de mercadorias e mensagens (como a publicidade ou a actividade multipartidária), o que inclui não só a praça pública mas também locais de encontro e de formação de opinião, do café aos jornais. E hoje, acrescentarÃamos um processo de que desconhecemos as consequências, para a democracia como para a própria “esfera públicaâ€: as redes da globalização (“sociaisâ€) e a internet.
Ora, acontece que pensar-se nesta “esfera pública†como espaço de liberdade é ilusório e paralisante. Porque o poder (seja feudal, seja burguês) não abdica, nunca abdicou, da sua afirmação celebrativa através da arquitectura (dando razão ao velho enunciado de Benjamin que dizia cada “documento de cultura†ser um “documento de barbárieâ€), tornando a arquitectura, como referiu Bataille em 1929, uma forma convexa (“saliente†e agressiva em nossa direcção) de intimidação e silenciamento das multidões (ou seja, do que é possÃvel manifestar-se na “esfera públicaâ€). Aqui, diz Bataille que a tomada da Bastilha é a resposta ou ódio do povo a essa lógica do monumento intimidatório.
Portanto, a primeira forma de privatização do espaço público reside na natureza da própria arquitectura (agressiva em Bataille, “vigilante†e côncava em Foucault, vendo este a prisão como o lugar de nascimento da arquitectura).
Esta crescente (e secreta) privatização do espaço público foi muito bem entendida cinicamente pela arquitectura das big corporations, que, nos anos 70 (associada a arquitectos como Kevin Roche e John Portman) criaram uma nova realidade: o corporate atrium, que consistia, como ainda consiste, na criação de “novos†e naturais-artificiais jardins (totalmente privados, invertendo a lógica do parque público) nos átrios das sedes das grandes multinacionais.
No Ford Foundation Building (Kevin Roche, 1967), o jardim do seu átrio reinstala então uma nova paisagem arcadiana privada no centro de Nova Iorque. O antigo e idÃlico jardim público suburbano é, desde aÃ, “espaço público corporativo†no centro da cidade, um novo “jardim privado†(que acompanhou o regresso habitacional das classes médias para o centro da cidade!, e nenhum interesse público se lhe deve reconhecer).
O facto do corporation building incorporar “jardins†pretensamente “públicos†em nada contribui para desprivatizar o que já vinha, em alta velocidade, sendo privatizado: depois de privatizado o espaço das consciências (publicidade), efectiva-se a privatização global da cidade através do poder do dinheiro e da sua vontade arquitectónica de recriar a “naturezaâ€.
Neste tempo, dos anos 60 aos anos 80 (e à actualidade), fica também a perceber-se que a chamada requalificação urbana é uma outra e refinada polÃtica de exclusão, nascendo daà a realidade “institucional†da homelessness. A arquitectura passa a funcionar, desde então, como factor de exclusão económica, mostrando Rosalyn Deutsche (Evictions: Art and Spatial Politics, 1996) que o aumento dos homeless é também fruto desta privatização absoluta inerente à s novas polÃticas de desenvolvimento e requalificação urbana. Resumindo, a requalificação urbana (chamemos-lhe “pós-modernaâ€) e a nova era do corporate building (e o falso “parque urbano†que alberga) é assim um campo de exclusão, que não só dele exclui o homeless, mas, mais imporatente, o produz e multiplica.
THOMAS HIRSCHHORN. Spinoza Festival. 2009.
2. EM APREÇO DAS ACAMPADAS
Consciente e inconscientemente, com ideologia ou sem ideologia, mesmo ouvindo eu coisas que nada me interessam como um slogan proferido em Madrid, “nem comunismo nem capitalismoâ€, apesar de ambiguidades e indefinições, as ACAMPADAS são uma excelente resposta à história de privatização da vida que aqui descrevi, uma excelente resposta ao urbanismo inaceitável que vemos desenvolver-se, e uma resposta à s decisivas questões polÃticas do momento: privatização geral da economia (que deve ser relacionada com a do espaço público), de todos os serviços públicos, dÃvida pública a arcar com a dÃvida privada criminosa, novo fôlego do “socialista†(foda-se!!) FMI, etc.
A urgente e necessária resposta popular tem de passar pela ocupação do privatizado espaço público, pois só essa ocupação o devolve ao público, e, por outro lado, também há que referir que a urgência dessa acção (dessas acções) tornou estas novas praças, publicamente vivenciadas, em obras de arte.
Com efeito, o Rossio em muito me fez lembrar as intervenções (escultóricas, instalativas e públicas) de um dos mais interessantes artistas da actualidade, Thomas Hirschhorn.
Uma das suas mais conhecidas intervenções (no contexto de uma importantÃssima exposição como foi a Documenta de Kassel de 2002), passou por criar espaços polivalentes (num bairro de imigrantes turcos em Kassel) em tudo semelhantes aos da acampada do Rossio. A obra que propôs à Documenta desse ano era constituÃda por uma biblioteca comunitária, um café, um improvisado estúdio de televisão, onde os habitantes do bairro falavam e eram difundidos num criado canal local (uma espécie de assembleia popular, que eu não perdia ao fim da tarde depois de “passear†pelos espaços da mega-exposição que é sempre Kassel). Chamava-se, não por acaso, Bataille Monument. Arte e polÃtica irmanadas. Uma luta idêntica.
THOMAS HIRSCHHORN. Bataille Monument (intervenção na Documenta de Kassel, 2002).
Depois do Guerreiro e do Nuno que brutalidade de análise. Até ao São Jorge. Abraço.
É verdade: brutalidade anti-Jugular, sempre.
Anti-madame Mubarak, ainda mais.
AÃ, nessa galáxia, deveria a polÃcia actuar. Não me importava nada.
Grande abraço.
Excelente posta, CV.
Mas confesso que do inÃcio ao fim, pela semelhança da crÃtica, estive à espera de ler sobre a Internacional Situacionista.
Cumps.
Eu sei, eu sei, mas isso era um novo post, uma necessária segunda parte:
A deriva, o detournement, o Constant Nieuwenhuys, a Nova Babilónia, a arquitectura precária (há um bom texto do Peter Wollen sobre isso, recente), o acampamento e a vida nómada, etc. Falta tudo isso aqui. Mas está aqui esse enorme artista que é Thomas Hirschhorn, autor da melhor exposição em todo o Museu de Serralves desde a abertura do novo edifÃcio do Siza.
Abraço.
Admito que não conhecia muito de Hirschhorn, passarei a estar mais atento.
Obviamente tudo isso (irei investigar o texto do Wollen), mas para uma segunda parte conviria não esquecer a “CrÃtica” de Lefebvre, que muito influenciou as crÃticas dos Letristas e dos Situacionistas à s transformações urbanas de Paris. Isto digo eu, que tenho uma biblioteca pequena acumulada por gosto e para uma modesta tese, certamente o CV terá bem mais referências.
Cumprimentos
Belo texto!!
comentei, curto, assim:
http://odesproposito.blogspot.com/2011/06/primos-convexos.html
Comentar, comentar, não comentou.
Fez um poema de verso fragmentado.
E chega.
Uma coisa meio corporativa, pouca coisa.
(Ah, e não gostou do Bataille – boa sorte e prazer o seu…)
Já quanto ao Hirschhorn, nada.
Não é da corporação.
poeta ainda vá que não vá agora corporativo é que nem pela metade
quanto ao Hirs, exactamente, nada
tenho por hábito não escrever sobre aquilo que não conheço (o suficiente)
são feitios
já a primeira foto, da acampada, é linda
parece um presépio da cavaca com o estaline no lugar do menino jesus (e o marx no lugar do s. josé e o lenine no lugar da maria…)
isto, claro, se a imagem não for demasiado poética…
É que o texto é uma humilde sinfonia ao Hirschhorn,
e à relação entre a imagem de “urgência de acção” na obra de Hirschhorn e as “acampadas” (coisas visual e conceptualmente afins).
Se, da sua parte, em torno de Hirschhorn, nada…
Então, não sei ao que veio.
Não lhe agradam outros posts??
Não pode mudar-se para lá??
peço desculpa
pensei que a sua “humilde sinfonia” era sobre o “ESPAÇO PÚBLICO e ESFERA PÚBLICA: a sua ocupação é uma forma de a libertar da privatização em curso – E UMA PALAVRA DE SOLIDARIEDADE ÀS ACAMPADAS MUNDIAIS (DE TAHRIR AO ROSSIO)”
estava, como é agora evidente, enganado
E continua enganado com o engano!
É que o meu caro insiste em falar de Roche e Johnson, e eu escrevi sobre Habermas e Hirschhorn.
V. apenas sabe falar/escrever sobre a sua corporação, mas eu aqui vou por outro lado. Em suma, e sendo sincero, não sei o que quer, não lhe posso responder.
Bom post Carlos Vidal mas fica a mesma estranheza em todos os seus escritos: não se pode pensar o espaço público e a divisão propriedade pública/privada/’commons’ sem referir, ainda que para criticar nomes como Coase, Ostrom, Williamson. A tÃmida referência à internet também esquece Lessig ou Benchler..
Enfim, fica sempre a ideia que a crÃtica feita nunca acerta no inimigo por falta de conhecimento sobre o que este último diz.
peço mais uma vez desculpa mas quem foi buscar o K. Roche e o Portman foi o autor da posta
se não era sobre isso que queria falar então não fale
o exemplo do K. Roche é particularmente infeliz porque é a invocação de um arquitecto “progressista” tão ou mais de “esquerda” que outros arquitectos por aqui muito admirados (e sempre desculpados…)
recomendo o estudo do proj. para o federal reserve bank de 69
no que diz respeito à privatização do espaço a posta repete os habituais chavões de “esquerda” de bom tom e boa consciência que até uma jugular podia subscrever
sobre a desfesa da corporação é mais uma vez o autor da posta que (dupla, triplamente) se engana
Por acaso, acaso à s vezes consensual (há quem não os esqueça na arquitectura), alguns dos melhores teóricos da arquitectura são artistas plásticos: recomendo o Dan Graham, no “canónico” Rock My Religion (MIT Press, 1993).
Para já, para já, aqui me fico.
Posso voltar, mas não agora – valores mais altos se “alevantam”.