“Como é que nós estamos?”. Ummfmm. “Na mesma?” Ummfmm. “Mau, não pode ser! Não se sente mesmo melhor?”. Urgências do hospital de São João, três da manhã. O homem tem um braço a soro, o outro a proteger os olhos. Uma mulher diz obscenidades. Mães acompanham adolescentes com cólicas. Homens, mulheres e crianças, tudo sob a alçada da mesma médica. O caso não deve ser grave, porque nos deram pulseiras amarelas. Deram, não: estou há meia dúzia de horas nas urgências e já falo como a médica, como é que nós estamos? Estamos pois à espera do resultado das análises, eu e a minha doente, mas a minha pulseira é, em bom rigor, lilás, a cor dos acompanhantes no código cromático do hospital. Enfermeiros ajustam o soro dos doentes. Há tanta gente a soro que deve fazer parte do tratamento compulsivo, isso e as análises que toda a gente espera, sentados nas cadeiras paralelas às paredes. A rotina só é interrompida pela falsa loira que diz obscenidades, “você gosta de punheta?”. A velha minúscula que a acompanha encolhe os ombros, igualzinha à actriz que fazia de mãe do Jô Soares, pensar que eu saí de dentro dela. “Punheta de bacalhau, não gostam? Bem bom!”. Entre elas e eu há uma dúzia de doentes, incluindo a minha, mas falam ambas alto, a mais nova a passar receitas, a mais velha resignada aos sorrisos amarelos, “que remédio, já estou habituada, é sempre a mesma coisa quando vimos ao hospital”. Saio para mais um cigarro e para contar ao meu irmão como é que nós estamos, “’tá tudo no Ivan Ilitch, sabes?”, se dependesse da médica os doentes curavam-se por obra e graça das perguntas dela, bata verde e All Star, como nas séries americanas, só que aqui é tudo gente a soro à espera das análises, “tudo da mesma maneira para todas as pessoas”, e isso também, garante o meu irmão, vem no Ivan Ilitch. Entra mais uma adolescente com cólicas e mãe acoplada, as análises ainda demoram? A médica não tem óculos como no Ivan Ilitch mas olha-me severamente, e é exactamente como se dissesse: “Arguid[a], se não se mantiver nos limites das perguntas que lhe são feitas, serei obrigad[a] a dar uma ordem para que [a] retirem da sala de audiências”. “Estou farta desta merda! Eu bato com a cabeça na parede até sair daqui, ouviste?!”. De repente a mulher da punheta desata aos coices e murros, acontece tudo muito depressa, como nos filmes, por uma vez as All Star justificam-se e a médica pode enfim sprintar como nas séries, dois seguranças atrás dela, a loira a uivar no chão. “Esta doente entrou com quê?!”. Silêncio. “Com o que é que entrou esta doente?!”. “Sôtora, a doente é aquela senhora”, atreve-se um dos doentes, a apontar para a velha-pensar-que-eu-saí-de-dentro-dela, de pé a olhar para a filha, “essa senhora só veio acompanhar”.
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