(No dia da morte de José Saramago, creio que este texto que o Manuel Gusmão escreveu para o 5dias será uma das mais simples e camaradas homenagens, que se poderão ler durante os próximos dias. tms)
Saramago é um escritor que se conquistou a si mesmo, que encontrou a sua maneira em pleno percurso. Que fez o seu caminho, caminhando. A fase da sua obra que vai produzir essa maneira que muitos reconhecem como a marca da sua assinatura, vai de 1977, ano fecundo da narrativa em português, em que publica Manual de Pintura e Caligrafia, a 1981, ano em que sai a 1º edição da sua Viagem a Portugal. Entre esses dois anos e esses dois livros, Saramago publicara Objecto quase (1978), “O ouvido†integrado na obra colectiva Poética dos Cinco Sentidos (1979), Levantado do chão (1980) e duas peças de teatro – A noite (1979) e Que farei com este livro? (1980). Se é com Memorial do Convento (1982) que o seu êxito se torna uma evidência, inclusivamente à escala internacional é nessa fase (1977-1981) assistimos à descoberta e invenção do fundamental do dispositivo narrativo que o vai acompanhar ao longo da obra. Manual de Pintura e Caligrafia é na ficção, uma meditação sobre os problemas da representação; a dissociação entre representação e semelhança, preparando assim a desenvoltura na construção dos mundos narrativos na obra posterior. A Viagem a Portugal dá conta da espessura significativa da radicação no território pátrio da ficção de Saramago. Em Levantado do Chão, surge a famosa frase em que várias personagens, inclusivamente o narrador, podem falar; essa frase que é assim dita em diálogo, mostrando essa admirável evidência da socialidade da linguagem. Este romance dispõe já da construção de uma figura de narrador marcado pela “auralidadeâ€, de uma frase articulada por um nÃtido ritmo sintáctico. E sobretudo começa a funcionar um princÃpio narrativo que parte de uma negativa ou negação imposta a uma história já contada pelos vencedores ou de qualquer fora por uma historiografia oficial. Essa negatividade marca a relação entre ficção e história no que se poderia considerar a primeira fase da nova maneira de Saramago. Nela conta-se sempre de outra maneira algo que já foi contado, designadamente porque se conta algo que nunca mereceu ser narrado, nomeadamente a história dos servos e dos que transportam a pedra e constroem Mafra. Assim é em Memorial do Convento, Em O ano da morte de Ricardo Reis, História do Cerco de Lisboa, O Evangelho segundo Jesus Cristo. Com A jangada de Pedra anuncia-se o que virá a ser um outro dispositivo narrativo, caracterÃstico de uma segunda fase da maneira “Saramago†que se afirmará inicialmente em Ensaio sobre a Cegueira e Todos os nomes e continuará depois. A este novo dispositivo chamarei de alegoria do presente.
José Saramago morreu. Inicia-se o seu segundo combate ou uma nova fase do seu combate de há muito: a luta pelo reconhecimento pleno da sua obra. A luta pela conquista e fidelização de leitores, pela leitura e releitura dos seus livros. Mas não só dos seus, e sim pela leitura dos grandes do passado ou dos seus contemporâneos: Camões, O padre António Vieira, Almeida Garrett, Camilo e Eça, Jorge de Sena ou Rodrigues Miguéis, numa lista incompleta. Portugal é um paÃs em que historicamente se acumularam atrasos culturais e uma enorme fragilidade das suas instituições culturais. Isso explica em parte que a morte de um escritor seja muitas vezes a sua entrada num limbo da memória, num perÃodo de descaso e de esquecimento. O Nobel que ganhou é em relação a esse comportamento do futuro uma protecção simbólica, é certo, mas não suficiente por si só. Um pouco por todo o mundo (não estou a exagerar) foi lido e amado por leitores que, em tempos de derrota e de solidão, reconheceram nele um dos seus, alguém que ocupava o mesmo campo social à escala planetária. Esse facto foi caricaturado por alguns, que atribuÃram o seu sucesso a uma “conspiração internacional†de comunistas ou cripto-comunistas.
Agora que morreu, nós temos responsabilidades acrescidas nesse combate. E não é preciso “conspiração†nenhuma. Basta cuidar do nosso património literário e artÃstico. Ele permaneceu fiel à longa e denegada “tradição dos oprimidos†(Walter Benjamin). Nós que nessa tradição temos vindo, sabemos que a memória é uma condição do desejo de futuro; sabemos que o cuidar da memória integra o longo trabalho da emancipação. Eu sei que há quem deteste palavras como estas – memória, futuro, trabalho, emancipação – , mas que hei-de fazer, ó boas almas, é que ele era um dos nossos.
Nunca lhe perdoaram o facto de ser um Serralheiro que escrevia e acabou a ganhar um Nobel, as inteligências bem pensantes e os teóricos da treta sempre se sentiram ofendidos.
Pior que isso, ainda por cima ser Comunista e ter-se mantido fiel à sua opção até ao fim da vida
Isto apesar das costumeiras manifestações de pesar algumas que se não fosse o acontecimento deveriam estar no anedotário nacional
é isso camarada Pisca
as piranhas já começaram a apropriar-se do cadáver. Hoje à noite já houve duas televisões que a propósito da morte de Saramago foram entrevistar… o ex-ministro pide do PSD que censurou o Evangelho
aqui deixo um cravo
Vou fazer link, Tiago.
Obrigado.
Abraço.
Pingback: cinco dias » Do interesse jornalÃstico
Pingback: Tweets that mention cinco dias » José Saramago, por Manuel Gusmão -- Topsy.com
Pingback: MEMÓRIA, FUTURO, TRABALHO, EMANCIPAÇÃO « OLHE QUE NÃO
“Nunca lhe perdoaram o facto de ser um Serralheiro…” foi significativo para que reparou que o lara se fez filmar junto aos diplomas…
Muito bom. Temos de reconhecer os que tem valor. Sempre…
No(s) caso(s) JoséSaramago(s), desviar (comentando) mais a atenção para a pobreza de espÃrito que O rodeou em vida é, de alguma forma, empurrar para junto dele a mediocridade que o não reconheceu ou aplaudÃu em vida. Se repararem, o contrário do que o próprio Saramago “lhes” fez enquanto Ser-Humano-Maior. Isto para dizer que de 6 comentários aqui registados…apenas 1 “deixou um cravo” para Saramago. Todos os outros se limitaram a “aproveitá-lo” para dar largas a ….coisas-outras.
(como complemento de comentário direi que, no dia da morte da José Saramago, dediquei-lhe um Poema, que entreguei a Pilar, em que exectamente ficou dito “…é nome de não-ir-embora…alquimia em almofariz de mago…vaguear, intemporal, por aà afora… e levar na boca um nome: SARAMAGO” – não gosto de misturar aqui outros nomes ou ódios!)