Um artigo de Sara Gamito, no DN de ontem, lembrava que a “Lei portuguesa proíbe que transexuais engravidem”.
Ou seja, “Portugal obriga qualquer mulher que se queira tornar num homem a apresentar documentos a provar que retirou os ovários e o útero”. O mesmo acontece, aliás, mesmo que o artigo não o refira, no caso das transexuais femininas, que no fim do longo, moroso e obstaculizante pesadelo médico-judicial a que têm de submeter-se todas as pessoas que pretendam “mudar de sexo”, só obtêm documentos de identificação de acordo com o género escolhido e vivido após comprovação da faloplastia, ou seja, de que não possuem já o membro viril que, naturalmente, não pode ser tolerado num corpo de mulher. “Naturalmente”, porque a moral que determinou tanto o discurso e a prática médica, como a legislação actual sobre transexualidade, não parte de outra base senão a da “naturalidade” das coisas, a “naturalidade” do padrão maioritário versus a aberração do que escapa à norma, a mesma moral que confunde sexo biológico (corpo, hormonas, genes, genitais) com género (identificação pessoal face aos conceitos socialmente construídos de masculino e feminino), uma moral machista baseada num sacrossanto e intocável binarismo de género a partir do qual, entre os humanos, só existiriam homens e mulheres, e que entre um e qualquer outro ser humano a combinação entre genes, hormonas e genitais seja irrepetível, é uma verdade que ameaçaria o dogma inquestionável de que homens e mulheres são coisas claramente definidas pela natureza, que um homem não pode ter uma vagina ou um útero, e uma mulher não pode ter um falo, cruz credo, ai que nos levam as poucas certezas que ainda tínhamos.
É caso para isso: talvez um dia saibamos reconhecer e respeitar melhor a diversidade humana, inclusive face ao género. Mas tudo isto tem bases na menos desconhecida discriminação de género de que decorrem as sociedades falocráticas e a menorização das mulheres. Hoje não menos do que ontem, apenas sob outras formas.
Segundo o DN, a opinião “da maioria da comunidade médica que acompanha os processos de mudança de sexo”, é a de que não é possível admitir que alguém seja transexual se deseja “continuar com os órgãos sexuais de origem”, palavras do endocrinologista Santinho Martins, que, no Hospital Júlio de Matos, é uma das pessoas que diz o que são, como devem ser e se são ou não transexuais – porque estas não podem ser consideradas pessoas no seu perfeito juízo para saberem por si aquilo que desejam.” O erro de base, tão estendível a outras posturas médicas habituais: quando os médicos, perante uma realidade que “naturalmente” está envolta em ignorância e discriminação, acham que sabem melhor do que os próprios interessados o que lhes vai na cabeça e é melhor para si, tornando-se numa verdadeira polícia do género, a prática médica ditada pela legislação ditada pelo preconceito social.
Não há apenas transexuais. Há pessoas entre géneros, há pessoas intersexuais, que nasceram com características biológicas de ambos os sexos e são muitas vezes, na minoria de casos em que os genitais as denunciam, mutiladas à nascença para fazer um “homem” ou uma “mulher” como deve ser, não vão eles lembrar-se de se serem apenas a si mesmos como pessoas, para lá dessas categorias tão intocáveis. Para a prática médica, não. Apenas há transexuais, e só podem portanto querer ir em linha recta de um sexo a outro (homem/mulher, se não se cabe nisto é-se excluído do processo e acaba-se a comprar e a injectar hormonas no mercado negro e sem acompanhamento médico ou, como em muitos casos, no suicídio), e que muitas das pessoas que se dirigem aos serviços do SNS afirmem mentir para caberem nas estreitas definições médicas de transexual, de forma a poderem efectuar as mudanças corporais, (há uns anos – ou hoje ainda? – @s transexuais homossexuais escondiam a sua orientação sexual, porque para os médicos só podiam haver transexuais heterossexuais) isso não importa.
Não só a transexualidade continua a ser oficialmente considerada uma doença mental, com psiquiatrização obrigatória e dissuasória de vários ou longos anos (claro, quem quer mudar de sexo não pode estar bom do juízo e tem de ser protegido de si próprio, dizem a prática médica e a Lei), como se acha correcto, perante a vontade de efectuar uma operação de “mudança de sexo”, impôr uma esterilização forçada aos transexuais masculinos, como a anulação de qualquer casamento prévio (claro está, entre pessoas do mesmo sexo não pode ser…), entre outras singelas pré-condições.
“Prova de esterilidade irreversível”. Um nome claro para esterilização forçada, sim, como no caso da mutilação genital feminina, e também sobre pessoas vulnerabilizadas por uma marginalização/subalternização social. “Forçada”, como? Podem sempre não mudar de sexo… pois a quem o argumente, sem entender que falamos traços identitários e caracterizantes da personalidade, e portanto vitais e características pessoais inalienáveis, eu recomendo que experimente, enquanto lê este pequeno texto, mudar de côr de pele, a ver se consegue. E se conseguiria, na sociedade do sacrossanto binarismo de género, viver num corpo que não corresponde ao género de que se sente, masculino, feminino, ou qualquer um dos infinitos sentires que há pelo meio desses dois conceitos-extremo (já agora, quem é mais – e menos – “homem”, o que tem um falo maior, o que produz mais testosterona, ou o que tem mais pelo corporal?). E um homossexual, é um “homem”?
Não, nestas coisas não se pode tocar. Isso de transexuais masculinos a engravidar que fique lá nos Estados Unidos… em Portugal, um homem é um homem e uma mulher é uma mulher… ou não fosse preciso manter a mulher no seu lugar.
A retórica da coisa diz tudo sobre este pano de fundo que é o patriarcado, e que também neste caso, é o que tudo justifica. “Naturalmente”, ter filhos é coisa de gajas, ter desejos parentais é coisa de gajas, em última análise, as gajas até deviam ser umas incubadoras, e assim como assim é maioritariamente a elas que ainda cabe cuidar dos rebentos, uma vez feitos. “Naturalmente”, o desejo reprodutivo não pode ser senão correspondente a uma identidade de género feminina.
“Naturalmente”, estas são questões que abalam não só o dogma do binarismo absoluto entre dois géneros exclusivos, como também as normas de género que de tão enraizadas e para lá de centenas de anos de conquistas feministas, fazem ainda da sociedade uma sociedade masculina, do masculino um detentor privilegiado dos meios de decisão, das relações entre sexos uma teia intrincada e subtil, mas não menos real, de relações de poder baseadas no género, e em tensão permanente. Deixamo-l@s mudar o corpo mas não deixamos que nos confundam, são obrigados a esterilizar-se, ah, podemos dormir descansados, o falo continua a definir o homem, a vagina a mulher. Tudo está bem, e continua simples.
“Naturalmente”, enquanto a discriminação de género for dominante, a transexualidade continuará a ser vista como doença, e a intersexualidade como deficiência a corrigir por todos os meios, e há mesmo quem o argumente do lado de cá para supostamente defender a manutenção dos cuidados médicos a transexuais no Sistema Nacional de Saúde. Ora, não é por se tratar de uma doença que o SNS deve garantir esses cuidados, mas pelo reconhecimento social, legal e médico de uma realidade, e de pessoas específicas com necessidades específicas. Tal como muitas outras.
Já agora: imaginais o que se passa quando as pessoas que mudam de sexo já têm filhos biológicos? Xeque-mate…
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