Apesar de ter vivido quase toda a vida no Norte do país (com uma incursão no centro & excursões frequentes à capital do reino), tenho uma destas aborrecidas pronúncias “accentless Portuguese” que me lixa sempre que apanho um táxi no Porto (“A menina é de Lisboa?”). Não vos maço com as razões para a minha incaracterística dicção: basta que saibam que é o resultado de migrações várias e de ter uma mãe que, odiando as pronúncias dos sucessivos sítios por onde fomos passando, nos castigava sempre que nos afastávamos da norma transmontana; como sempre duvidei que os genes bastassem para me dar direitos de cidadania, recusei eu própria as longas e doces sílabas que eram a minha herança natural, replicando a rejeição sentida por não ser da(s) terra(s) onde vivi. Não tenho pronúncia de lado nenhum porque nunca me senti de lado nenhum – o que tem, como tudo na vida, vantagens e desvantagens.
Paradoxalmente (ou talvez não), adoro pronúncias, portuguesas e estrangeiras. Fascina-me que Graça Morais ou José Cesário continuem a falar, muitos anos depois de arribarem à cidade, o mais puro e inadulterado transmontanês ou beirão; e encho os ouvidos dos amigos quando, em Inglaterra, colo a orelha às conversas alheias (“Where is she from?” – “Upper class, public-school twat”). A radioscopia daquelas vozes conta a história das respectivas origens geográficas e sociais, mas também da resistência à contaminação de que sou facilmente vítima. Noutras línguas que não o português, e que falo tant bien que mal, sou permeável à voz do interlocutor: o meu melhor francês nasce, de geração espontânea, em Paris, o meu castelhano é anedoticamente argentino porque a maioria dos meus amigos vem de Buenos Aires, o meu inglês pretensiosamente Oxbridge sem nunca ter frequentado um dos colleges (embora um amigo canadiano who likes to tease me jure que eu falo como “boat people” – e acredito que se tivesse a infelicidade de me ver numa dessas barcas do Inferno não tardaria em falar puro “peopleboatês”).
Advogada em causa própria, sempre desconfiei da tese de que as pronúncias são a marca de água da autenticidade, e que quem não as tem ou mantém é um arrivista / agente duplo / mimo treinado em PNL (risquem os insultos que não interessem). Porque a realidade é infinitamente mais complexa, e a mudança de sotaque, ainda que pigmaliónica, conta uma história tão autêntica como a pronúncia transmontana de Graça Morais: o intelectual nascido entre camponeses das Beiras, o impecável sotaque more-native-than-thou do imigrante ucraniano, os vários papéis e identidades que vamos assumindo na vida, ou as traições e gaffes que acontecem a quem nasceu no palco errado. É a história de actores sociais, sim, de políticos histriónicos, de social-climbers, mas também de poetas e escritores que falam as línguas do Outro, esse estrangeiro. Borges, que tal como eu descendia de transmontanos, conta a história da chegada ao céu de Shakespeare, “instintivamente adestrado no hábito de simular que era alguém para que não se descobrisse a sua condição de ninguém”. Queixando-se ao criador de não ter uma voz distintiva (“eu, que tantos homens fui em vão, quero ser um e eu”), ouve dele a seguinte resposta: “Também eu não sou; sonhei o mundo como tu sonhaste a tua obra, meu Shakespeare, e entre as formas do meu sonho estás tu, que como eu és muitos e ninguém”.
Vêm estas reflexões a propósito de um ensaio de Zadie Smith, “Speaking in Tongues”, publicado na New York Review of Books (a que cheguei através deste blogue), sobre, entre outras coisas, Obama, Eliza Doolitle, Shakespeare e Cary Grant, personagens que transcenderam a própria voz e com isso a própria história. Não se assustem com as lonjuras do artigo e vão lá lê-lo, porque além de muitíssimo interessante, dá-me razão em vários pontos (e eu não gosto de contrariar ninguém que me dê razão). Avant-goût:
Pingback: Bi O Boi Beijar A Baca | :fractura .net!