O Nuno desafiou-nos há alguns dias a propósito da polémica de Sokal. Não sou grande conhecedor da filosofia e das ciências humanas em geral, a matéria prima do meu trabalho de matemático aplicado é cientifica. Na altura a polémica interessou-me, li alguns textos sobre o assunto depois passei a outra coisa.
Num interessante artigo Edgar Morin identificou duas facetas da polémica: “molièresca” e “torquemadesca”. Aquela que mais me interessa aqui é a primeira. O hoax de Sokal tem um paralelo artístico com a paródia de Roland Dorgelès em 1910 que expôs no “Sallon des indépendents” um quadro pintado pela cauda de um burro convenientemente mergulhada em tinta a que chamou “Coucher de soleil sur l’Adriatique” assinado por Boronali (um anagrama de Aliboron o burro de uma das fábulas de La Fontaine).
Em ambos os casos os autores servem-se da paródia para demonstrar que é possível vender gato por lebre. No caso Sokal a revista não tinha comité de leitura e o artigo foi aceite apesar do seu total absurdo. O caso não é único há mesmo um exemplo de uma publicação de um artigo criado por extracção aleatória de palavras de um dicionário técnico numa revista com comité de leitura. O que me parece chocante é a utilização de noções matemáticas retiradas do seu contexto aplicadas a conceitos para as quais não foram criadas sem o cuidado de definir precisamente os objectos a que se aplicam e que dão resultados como a citação de Lacan que vemos no texto do Luís Rainha.
Não pretendo com isto dizer que a ciência em geral e a matemática em particular devam ser objecto de uma santificação, a utilização de conceitos matemáticos noutras áreas da cultura seja como ilustração seja como matéria de reflexão pode ser fecunda. A utilização das superfícies de energia mínima e da geometria hiperbólica em arquitectura nos anos 60 e 70 parece-me um exemplo interessante assim como as reflexões de Xenakis sobre a música aleatória de Cage. O que me parece abusivo é o abuso de notação matemática num discurso em que esta não adianta grande coisa que serve finalmente para impressionar os leitores com menos cultura científica.
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