É inegável que o modernismo acabou por causar um divórcio em larga escala com o público. Se no início do século XX a burguesia parisiense ainda acorria às estreias de bailados com música de Stravinsky ou de Debussy – mesmo que apenas para patear – certo é que a implantação de sistemas artísticos como a música dodecafónica, pela sua intrínseca dificuldade ao ouvido não treinado, veio colocar novas exigências aos frequentadores de salas de concertos. Em Lisboa, os Encontros de Música Contemporânea sempre foram uma excelente oportunidade para ver, in loco, compositores como Nono, Boulez ou Stockhausen… em salas quase vazias. Ainda hoje, cada programa mais “moderno” é garantia de Grande Auditório com bastantes lugares vagos.
É argumentável que o mesmo se passou com as artes visuais: olhando para um livro como A Child of Six Could do It — Cartoons about Modern Art, vemos que já no século XIX as vanguardas artísticas – na altura o Impressionismo – eram objecto de continuados remoques nas revistas burguesas de então. Isto é revelador por dois prismas: primeiro, fala-nos da hostilidade com que a opinião pública de cada época recebe as suas vanguardas, mesmo que estas nos pareçam hoje inofensivas; depois, revela-nos dias em que a cena artística era suficientemente relevante para a burguesia para ser alvo de chacota em forma de cartoon nos media da altura. Hoje, as artes plásticas só suscitam debate popular a propósito de eventos aparentemente aberrantes, como a nomeação de Tracy Emin para o prémio Turner com uma peça que se resumia a uma cama desfeita coberta de souvenirs pessoais. Aliás, um estudo recente de Elizabeth Silva mostra-nos um público inglês agarrado a “paisagens”, e “impressionistas”, afastado de modalidades mais recentes como a performance. A própria Emin aparece como pouco apreciada e mesmo não muito conhecida, apesar da então recente polémica.
Em paralelo, as décadas mais recentes trouxeram-nos também uma relevante contaminação do campo mainstream pelo avantgarde, sobretudo em áreas como a Música e a Literatura: géneros por tradição fáceis e pouco experimentalistas como o jazz e o rock começaram a integrar franjas mais “avançadas”, por vezes herdeiras de algumas influências de compositores eruditos. Escritores formalmente aventureiros, como José Saramago, ganharam popularidade. Assim, vivemos dias em que o progressivo afastamento do gosto “comum” das obras eruditas mais contemporâneas é acompanhado por um surgimento de “vanguardas” dentro de géneros populares, permitindo a criação de gostos snobs mesmo se ligados a formas de expressão antes visas como menos nobres. A separação radical dos campos eruditos contemporâneos do continente habitado pelos gostos medianos abriu assim espaço neste à eclosão de tendências eruditas nos territórios das massas.
Uma tal tendência poderá dificultar bastante a vida aos amantes da taxinomia: por exemplo, alguém que afirma gostar de Fado pode ter em mente experiências “mutantes” e algo eruditas como o trabalho de Anabela Duarte. Um leitor fanático de BD pode ter como preferido o trabalho de Chris Ware, não as aventuras do Flintstones.
Em alternativa, este novo eclectismo pode afinal ser mais uma sofisticada estratégia de distinção, adoptada por snobs de um novo tipo, que não são omnívoros mas sim gourmets com gosto pelo exótico e pela variedade…
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