No blogue da ex-revista Atlântico, Miguel Morgado escreve um interessante post de resposta ao meu comentário “Roosevelt contra Roosevelt” aqui abaixo. Começa assim:
Começo por um apontamento de estilo.
Independentemente do número de ocasiões em que todos os colunistas conservadores ou liberais-de-direita portugueses usarem o bordão “o facto em si mesmo não merece qualquer comentário“, independentemente de esse bordão parecer jeitoso e prático e de bom gosto, e independentemente do facto de (por exemplo) João Pereira Coutinho ou (por exemplo) Diogo Mainardi também estarem viciados nesse tipo de expressões, não se deve dizer que “x em si mesmo não merece qualquer comentário” e depois escrever três mil caracteres de comentário a x, e ainda por cima chamar x para o tÃtulo “A Obamania tem destas coisas”. Por exemplo: para mim merece comentário o facto de Miguel Morgado dizer que x não lhe merece comentário e depois comentar x. Se não merecesse comentário, não escreveria estas linhas; escrevendo-as, ficaria muito esquisito dizer que Miguel Morgado não merece comentário mas mesmo assim estou a escrever este comentário a uma coisa que não merece comentário. Miguel Morgado não deve ter medo de dizer que uma coisa merece comentário quando deseja comentá-la: o merecimento é diferente do mérito; uma coisa pode perfeitamente merecer comentário por ser inábil, ou incorrecta ou simplesmente mal enjorcada.
É esse o caso do que vem a seguir. Segundo Miguel Morgado, eu comparo os dois Roosevelts não para daà extrair um qualquer sentido mas “para dar um erudito”. Pois segundo Rui Tavares, Miguel Morgado descompara Roosevelt e Obama não “para dar um ar erudito” mas para deixar claro que não sabe o que é uma comparação — não como intenção, note-se, mas como resultado. Por exemplo: será que eu sei que no tempo de FD Roosevelt foram arrebanhados para  “campos de concentração de dezenas [na verdade, centenas] de milhares de cidadãos americanos de ascendência japonesa [na verdade, todos os imigrantes de nacionalidade japonesa — issei —, mais filhos e netos mesmo que de nacionalidade americana — nissei e sensei —, em todo o território dos estados de Washington, Oregon, Califórnia e metade do Nevada sob o comando do general De Witt “um japa é sempre um japa” — neste livro é capaz de encontrar alguma coisa sobre o assunto]”. E daÃ? Será que eu sei que Roosevelt andava de cadeira de rodas? Será que eu sei que Roosevelt viveu um romance com a secretária da mulher? Será que eu já reparei que o Roosevelt tem a pele mais clara do que o Obama?
Acontece que eu escrevi em que plano eu desejaria que a comparação entre Roosevelt e Obama se confirmasse, e é até um argumento bastante elementar:
Apesar de elementar, é impressionante como muita gente acha que é esta questão que não merece comentário, mesmo quando é ela que está à frente dos nossos olhos, mesmo quando ela é apresentada como a conclusão inescapável do texto. Barack Obama, tal como Roosevelt, não foge a esta questão. Convido Miguel Morgado a comparar isto com o seguinte trecho de um discurso em que Barack Obama resume o seu pensamento geral:
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Também pode aproveitar e olhar para esta imagem:
Suponho que a conclusão a retirar é que o candidato mais parecido com Franklin Delano Roosevelt afinal é John McCain: também tem o cabelo branco.
***
Um nota final: Miguel Morgado escreve que «dizer que FDR, “tal como Obama”, “apareceu com um discurso moderado e unificador” é roçar o absurdo» porque FDR em 1936 pronunciou estas estupendas palavras:
«We had to struggle with the old enemies of peace — business and financial monopoly, speculation, reckless banking, class antagonism, sectionalism, war profiteering. (…) Never before in all our history have these forces been so united against one candidate as they stand today. They are unanimous in their hate for me — and I welcome their hatred»
Basta notar o verbo “apareceu” e a data “1936”. Em 1936 Roosevelt não tinha acabado de aparecer com o discurso centrista que o caracterizou no inÃcio: já era presidente em fim de primeiro mandato. Vou cruzar os dedos — com pouca esperança — para que Obama diga coisas destas daqui a quatro anos. Entretanto vou também cruzar os dedos — com um pouco mais de esperança — para que Miguel Morgado perceba uma coisa: quando queremos refutar algo que alguém escreveu é melhor não usar argumentos que confirmam aquilo que esse alguém escreveu.
Lá mais abaixo há um Artigo em que se enunciam resumidamente algumas das formas de arrasar qualquer espécie de elevação intelectual num debate, sobretudo se ele é público, mais ainda quando ao vivo, principalmente na Rádio ou, ainda mais, na Televisão e também, bem entendido, na “blogosfera”.
Tenho curiosidade para ler a resposta do tal M. Morgado, assim o tempo mo permita. Mas sei já que, mesmo sem o ler, pela breve descrição aqui apresentada, me parece padecer de um dos piores métodos de arruinar uma discussão séria e que até (penso que) faltou à listagem “gibel” e que é o clássico “quando não houver um bom argumento à mão para defender aquilo que eu pensava à partida, mas que os factos provaram estar errado, deve-se deitar a mão a algo tido generalizadamente por bem-pensante à cerca do assunto e arremessá-lo para a discussão, ainda que descontextualizadamente, ou sobretudo nesse caso!”.
É como estar numa discussão sobre trânsito, por causa por exemplo de um acidente, e alguém vir dizer ao suposto culpado: “O sr. sabe que este gajo que diz que a culpa é sua tem o cão em casa e o maltrata selvà ticamente” (a estupidez do exemplo é voluntária e consciente, apesar da falta de tempo…)!
É o que faz M. Morgado ao invocar outras decisões do Presidente Roosevelt para defender a sua argumentação sobre um assunto que nada tem que ver com a raÃz dessa invocação.
Se perco tempo com isto, que não me afecta pessoalmente em nada, é porque constato ser um método muito utilizado pelos pensadores, ou vá lá, opinadores da Direita e que, curiosamente, como muito da arte retórica do actual neo-liberalismo, foi copiada dos velhos métodos de discussão marxista, que muito devem ter afectado os genes que originam a formação das meninges da ala anti-canhota.
É que este argumento é tão usado e abusado pelos prosadores e oradores desta sensibilidade polÃtica, que pode até constituir um caso de estudo sociológico…
Quanto à essência do tema, e apesar de não ser “obamanÃaco”, acho que as palavras de Obama revelam pelos menos intenções louváveis e que eu próprio partilho e desejo para Portugal…
Corrijo: o “golpe baixo” argumentativo de M. Morgado está devidamente considerado na “Lista de Gibel” e catalogado como «ignoratio elenchi»…
De há uns tempos para cá, venho reparando que o Rui Tavares ora se atrapalha, ora tropeça na lógica. Esclareça os seus leitores sobre o seguinte: deseja um Obama com um discurso moderado e unificador (pós-polÃtico, como agora se diz) ou um Obama com um discurso temerário e divisionista (do género luta-de-classes, como antigamente)? É que o Rui Tavares consegue numa frase dizer uma coisa e o seu contrário com uma facilidade inquietante… o perfeito polÃtico dos nossos dias.
Nuno V. : não é difÃcil. Já pensou que o tempo como nós vivemos nele é uma espécie de linha e que nele as coisas não acontecem todas em simultâneo? Eu digo que tanto Obama como Roosevelt apareceram com um discurso moderado e unificador. Nem me pronuncio sobre se acho esse discurso bom ou mau (noutros textos, já disse que prefiro um discurso mais combativo, porque é mais realista). Mas limito-me a constatar que tanto Obama como Roosevelt apareceram como moderados. O discurso de Roosevelt candidato em 1932, o Forgotten Man por exemplo, não tinha nada a ver com o trecho que o Miguel Morgado cita, que é de 1936. Depois digo que, tendo chegado como moderado, as circunstâncias levaram Roosevelt a refundar as estruturas sociais do paÃs (com a criação da Segurança Social e de um proto-subsÃdio de desemprego e ajuda à pobreza, as “relief rolls”, entre outras coisas). Mais uma vez, não é uma contradição, é uma constatação ou, no máximo, uma interpretação do que sucedeu. Em 1936 ele fala desses sucessos e da vitória sobre os adversários dessas medidas. Mede o ódio que eles lhe votam pela vitória das medidas de justiça social. O que eu desejo — sem muita esperança porque a tarefa é vasta — para daqui a quatro anos, se Obama tiver conseguido o que FDR conseguiu nos seus primeiros quatro — e não foi sem oposição, porque estas coisas nunca se conseguem sem oposição — é que Obama possa fazer o mesmo discurso de quem venceu contra os adversários da justiça social — divisionista é a expressão que você utiliza, eu não; acho que a justiça social é uma questão de liberdade que interessa à maioria da população.
O que me deixa muito motivado com esta disputa US é que a grande linha fracturante entre Democratas e Republicanos seja a criação de um Serviço Nacional de Saúde ou algo parecido.Dá bem a medida do valor social do SNS
tão atacado pela direita!
Caro LuÃs,
O Obama não defende a criação de um SNS europeu.
Defende o acesso universal a cuidados de saúde.
Não é a mesma coisa. Neste ponto, assim como em muitos outros, difere de FDR.
Caro Ezequiel.
Um SNS europeu é coisa que não existe. RU, França e Alemanha, por exemplo são completamente diversos. Chegam a resultados semelhantes, sim, mas por caminhos bem diversos.
Vocês sabem bem do que eu estou a falar …
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Não é propriamente o SNS porque se baseia no sistema de seguros, Medicare e Medicaid, mas os resultados são os mesmos pois estão integrados na Welfare. O grande problema é aquele sistema perverso de selecção, mesmo na situação de desemprego. Ou estando empregados, os salários serem tão baixos que não dão para seguros privados.
O sistema é tão escandaloso que tiveram que resolver à parte o acesso de grávidas, crianças, idosos e deficientes aos cuidados de saúde.
A Hilary, como 1ª dama, tinha como programa do 1º mandato a resolução destes problemas, mas o Congresso cortou-lhe logo de inÃcio as pretensões. E as simpatias, pois muita gente passou a detestá-la por estes devaneios ‘sicializantes’.
Muito bem, obrigado pelo esclarecimento. Os americanos saberão escolher o melhor de entre os dois candidatos.
Ooops! ‘Socializantes’.
Claro,Manuela, mas há 40 Milhões de excluÃdos e ninguem percebe, mesmo nos US, que um doente não seja tratado por não ter dinheiro!
Caro/a L. Rodrigues,
Existem sistemas diversos, sem dúvida. Mas todos comungam de um mesmo atributo essencial: o estado garante e proporciona (os hospitais são maioritariamente do estado, os médicos são pagos pelo estado …nos paÃses que mencionas, salvo erro) os cuidados de saúde. Existem sistemas privados paralelos mas os sistemas são eminentemente estatais.
O caso Americano é distinto. Existem sistemas estatais em NY, no Mass e em alguns outros estados. No entanto, o sistema americano é maioritariamente privado. Ora, tendo em conta que seria absurdo e provavelmente impossÃvel acabar com o sistema privado, o intento de proporcionar acessibilidade universal terá que ser conseguido neste contexto. Não se trata de um obstáculo, a meu ver. Muito pelo contrário. Terão que socializar o mercado livre, por assim dizer, assegurando a sustentabilidade real de um sistema que não será um sistema intervencionista Europeu. Ou melhor, será intervencionista, mas de forma radicalmente diferente. A grande revolução dp século XXI na polÃtica social (educação, especialmente a tecnológica, e a saúde) vai acontecer nos EUA… caso Obama seja eleito. These are interesting times! Eles vão ter que inventar umas sÃnteses interessantes. 🙂
sim senhor, rui tavares, tipos da sua qualidade já não se fazem, e os que já se fizeram ou estão mortos ou são de esquerda (à excepção do pedro mexia que entretanto também já se deixou destas coisas). Dói-me ver estas sovadelas que leva constantemente a tropa fandanga da atlântico e do 31, mas se elas têm de ser dadas (facto indiscutÃvel) ao menos que sejam dadas por si.
a acrescentar aos discursos de campanha, já algum dos ilustres comentadores se preocupou em averiguar o registo de votações do senhor Obama, no senado e no senado estadual de illinois!?
Não acham q dessa análise se poderia medir com maior exactidão se é “walk the walk” ou “talk the talk”!?
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